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SIHH: muitas formas sensuais

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SIHH: muitas formas sensuais

Na relojoaria, apelidam-se de “relógios de forma” todos aqueles que não assumem uma arquitetura circular na sua estrutura de base – a caixa. Os relógios redondos são considerados mais “comerciais”, mas a verdade é que alguns dos maiores ícones da relojoaria (Reverso, Monaco, Royal Oak) apresentam uma carroceria geométrica. A recente edição do Salão International de la Haute Horlogerie teve como protagonistas alguns relógios de forma com grande personalidade. Aqui estão eles, com a assinatura da Vacheron Constantin, Piaget, Panerai, Cartier e Baume & Mercier…

A circularidade do tempo – o sol que alterna com a lua, os dias que sucedem às noites, as estações que se revezam continuamente – tornou natural que, a partir do momento em que surgiram os primeiros relógios, a melhor maneira de apresentar o tempo seria com o recurso a ponteiros em movimento cíclico a partir de um eixo num mostrador circular. E, para muitos, o primeiro reflexo na aquisição de um relógio consiste em optar por um modelo redondo; por isso, são considerados mais comerciais – embora haja sempre um público mais rebelde que procure um design que ultrapasse a mera convenção circular. O recente Salon International de la Haute Horlogerie lançou para a ribalta modelos pouco convencionais que rapidamente foram considerados pela crítica como vedetas do certame.

É certo que o ritmo circular dos ponteiros torna lógico o recurso aos mostradores redondos e que a melhor maneira de albergar um mostrador em forma de disco consiste em utilizar a geometria circular para a concepção da caixa, sendo importante relembrar que, a partir de certa altura, novas exigências de estanqueidade fizeram com que o formato redondo fosse até o preferido por razões técnicas: porque a dilatação dos materiais se efectua do centro para a periferia, tornava-se mais fácil garantir hermetismo a partir de uma base circular, até porque as juntas em anel também eram mais fáceis de produzir e os vidros redondos mais fáceis de acoplar à caixa. Por razões simbólicas e técnicas, as caixas circulares sempre foram a escolha mais evidente – não só pela sua leitura intuitiva, mas também porque os relógios redondos tinham a vantagem de ser mais resistentes e estanques.

Isso mudou paulatinamente ao longo de um século XX no qual algumas consagradas marcas sempre acompanharam as influências artísticas (como os períodos Art Deco e Art Nouveau) e estiveram mais livres para ultrapassar constrangimentos técnicos devido à sua maior competência. Sem esquecer que marcas de alta-relojoaria e/ou de luxo têm maiores hipóteses de ser bem sucedidas em relógios de formatos diferente ou mesmo bizarro – são marcas de culto cujos seguidores apreciam exercícios de estilo com ângulos rectos nos quadrados e rectângulos ou variantes menos duras designadas por tonneau ou carré cambré; entretanto, o desenvolvimento tecnológico também permitiu avanços na área da ergonomia. Fast forward até Janeiro de 2015: aqui estão os relógios de forma que seleccionámos no Salon International de la Haute Horlogerie – alguns deles com inspiração assumidamente vintage.

Vacheron Constantin e o Harmony

Por ocasião do 260.o aniversário da sua fundação, a Vacheron Constantin apresentou os primeiros sete modelos de uma nova coleção batizada com o nome Harmony. Uma série limitada de relógios que ostenta a chamada forma de “almofada” (a tradução do inglês “cushion” ou do francês “carré ambré”) inspirada num dos primeiros cronógrafos de pulso da manufactura, desvelado em 1928.

Um dos modelos está equipado com um ponteiro dos segundos rattrapante e bate um novo recorde com o seu movimento automático ultraplano de apenas 5,20 mm; outro dispõe de um turbilhão, um terceiro recupera a escala pulsométrica do modelo original. A nova linha é complementada com um cronógrafo de senhora com dois pulsadores e por um trio de relógios de duplo fuso horário. Todos distinguidos com o prestigioso Punção de Genebra.

Desse lote, o grande destaque vai para o cronógrafo, um cronógrafo monopulsante dotado de escala pulsométrica no mostrador e motorizado pelo Calibre 3300 de carga manual, uma variação diretamente inspirada pelo modelo de 1928 que foi claramente um dos modelos mais aclamados do Salão… juntando os elementos retro da caixa e do mostrador a dimensões decididamente contemporâneas (44 mm). Limitado a 260 exemplares… que não tiveram problema nenhum em ser rapidamente escoados.

Foto7SIHH

A linha Harmony inclui também um cronógrafo monopulsante com tourbillhão, movido pelo Calibre 3200 de carga manual; o cronógrafo monopulsante ratrappante, com o Calibre automático 3500 que tem uma espessura de apenas 5,20 mm (a imagem de entrada deste artigo); e, por último, um cronógrafo de senhora com dois botões, movido pelo Calibre 1142 de carga manual.

Piaget Black Tie com a chancela de Andy Warhol

Seguramente um dos relógios mais inesperados do Salon International de la Haute Horlogerie e que não será apreciado por todos… mas dotado de uma personalidade vincada e com vocação para ser “dress watch” para as mais elegantes e formais ocasiões. Para mais estando associado a um ícone como Andy Warhol, que usou o modelo original no final da década de 1960.

Quando o original em “forma de almofada” apareceu, surpreendeu pelo design muito pouco comum da sua caixa, que não era redonda nem quadrada ou retangular mas uma junção geométrica que ia contra as normas tradicionais da época em que foi apresentado. Usando ângulos arredondados, a Piaget reformulou agora esse formato e usou um acabamento mais refinado na caixa, alternando superfícies em ouro mate e ouro polido sobrepostas para criar um efeito de profundidade. Décadas volvidas e relembrando a chegada dos mostradores de pedras duras da década de 1960, o relógio Black Tie reinventa a inspiração vintage para a Bienal dos Antiquários de Paris, com três modelos da colecção “Extremely Piaget” dotados de mostradores coloridos em lápis-lazuli, jade e raiz de rubi. A esses três modelos junta-se tal variação em ônix preto polido que esteve em destaque no Salon International de la Haute Horlogerie: o Black Tie.

Sem alterar a aparência única e tamanho incomum do relógio original, a versão reeditada do relógio Black Tie de inspiração vintage foi reajustada com uma espessura ligeiramente mais fina, graças à utilização do movimento automático Piaget 534P. O ouro amarelo da caixa foi substituído por ouro branco, contrastando com a profundidade preta do ônix para um look contemporâneo e masculino. Cada detalhe denota acabamentos cuidadosos, tais como o fundo acetinado com o brasão Piaget ou as linhas da caixa. Do casamento da pedra no mostrador e da escultura do ouro na caixa nasceu um relógio que encarna a filosofia estética da transição dos anos 1960 para a década de 1970 predominaram os relógios de forma e eram mais raros os modelos redondos.

Para além do Black Tie  de inspiração vintage, a Piaget apresentou também no Salon International de la Haute Horlogerie um modelo de senhora oval; dois modelos históricos de forma extraídos do património Piaget e revisitados através de novas interpretações que fazem lembrar o desenvolvimento estilístico no fim dos anos 1960 que projetou a principal tendência estética que caraterizou a relojoaria na década seguinte até à invasão dos modelos digitais de quartzo.

Um Panerai artisticamente decorado

Já se sabe que a Panerai assenta a sua coleção em duas linhas caraterizadas pelo formato ‘almofada’: a Radiomir e a Luminor. E há todos os motivos para incluir nesta seleção um modelo especial entre todos os que foram apresentados pela marca florentina no Salon International de la Haute Horlogerie: o Radiomir Firenze, limitado a semente 99 exemplares exclusivamente vendidos na boutique histórica da Officine Panerai na Piazza San Giovanni, em Florença.

A caixa em aço escovado de 47 mm de diâmetro tem as mesmas dimensões que o primeiro relógio criado pela Officine Panerai, em 1936… mas está inteiramente decorada com gravuras feitas à mão por mestres artesãos italianos que recorreram a motivos inspirados na iconografia florentina. Tal como as incrustações que adornam as fachadas de mármore das igrejas de Florença, as gravuras acentuam a arquitectura da caixa do relógio; alguns detalhes simbólicos têm um destaque particular, como o lírio florentino – o emblema da mais importante cidade da Toscana desde o século XI.

Cada caixa requer mais do que uma semana de trabalho por parte de um mestre em gravuras; um labor particularmente exigente dada a dureza do aço inoxidável AISI 316 L. Os motivos geométricos e florais são desenhados como um esboço temporário – recorrendo a giz em pó ou pó de magnésio – e, depois, são gravados com um buril. As superfícies gravadas são formadas a partir de finas linhas paralelas que conferem profundidade ao desenho, acentuando os contrastes entre o claro e escuro; qualquer erro que o artesão possa fazer ao manejar o seu buril na caixa danificaria irrevogavelmente o trabalho já realizado. O nome de Florença está inscrito no mostrador preto com caracteres típicos dos relógios vintage da Panerai.

A nova aposta da Cartier: Clé de sucesso?

A Cartier surpreendeu com o lançamento de uma nova linha assente num mostrador redondo baseado numa base cushion e caraterizada por uma coroa retangular dotada de um cabochon azul – e é precisamente a coroa que esteve na origem da atribuição do nome Clé (chave). Puxa-se a coroa retangular e, tal como uma chave que abre uma porta, o movimento de rotação serve para dar corda manual em caso de necessidade ou mudar a data na janela às 6 horas. Como não podia deixar de ser, o mostrador inclui os incontornáveis algarismos romanos privilegiados pela Cartier.

A base geométrica do Clé é reminiscente de um formato muito usado no final dos anos 1960 e na primeira metade da década de 1970 – como se pode constatar pelos muitos cronógrafos Heuer que na altura assumiram tais formas, nomeadamente o Autavia e o Carrera dessa época. Mas o Clé não é desportivo; interpreta o formato num conjunto elegante e unissexo, mesmo que haja tamanhos mais pequenos que naturalmente se adequam mais a pulsos femininos e uma versão maior de 40 mm mais destinada a utilizadores masculinos (embora possa ser perfeitamente usado por senhoras que não tenham um pulso demasiado pequeno). No seu conjunto, é uma linha menos efeminada e mais unissexo do que a Ballon Bleu.

A Cartier sempre foi uma casa que nunca teve receio de investir em modelos geométricos e de os transformar em ícones da relojoaria – sempre teve pedigree para o fazer sem recear que tivessem menor apetência comercial do que modelos redondos. Foi assim com o histórico Santos de personalidade quadrada que surgiu nos primórdios da relojoaria de pulso e se mantém na coleção sensivelmente um século depois, para além dos diversos Tank (Française, Américaine)… e diversos modelos assimétricos especiais. Como o Crash, apresentado em versão esqueleto no SIHH.

A ideia que esteve por trás da génese do Crash nasceu inadvertidamente de um acidente de carro em Londres nos anos 1960 que danificou/deformou um relógio; a Cartier optou por ressuscitá-lo numa versão em platina com mostrador esqueletizado e calibre esqueletizado especificamente desenhado para acompanhar o formato irregular da caixa – limitado a somente 67 exemplares, é o primeiro de uma série de relógios históricos da Cartier reimaginados consoante as exigências do século XXI.

O modelo original de 1967 manteve-se em produção durante 20 anos e teve uma reedição limitada em 1991, juntamente com algumas reedições especiais de tiragem ainda mais exclusiva. O novo Crash Skeleton é maior (23,18 por 45,32mm, contra 23 por 38mm) e assume a tal vertente esqueletizada que o torna ainda mais num objeto de culto extremamente colecionável. Até porque a platina exige uma maior dificuldade na escultura da caixa e torna o conjunto mais precioso.

Baume & Mercier Hampton Automatic

Finalmente, convém também abordar relógios de forma num patamar de preço inferior e mais acessível. Com um novo design aperfeiçoado, os dois modelos Hampton apresentados no Salon International de la Haute Horlogerie continuam a ostentar os atributos estéticos da histórica coleção retangular da Baume & Mercier, embora com recorrendo ao pormenor disruptivo que é a ‘ranhura’ inserida na caixa às 3h e às 9h. Ambos os modelos, apenas diferentes na aplicação dos algarismos e ponteiros no mostrador (azulados ou dourados), assentam em linhas retangulares que acentuam a sua personalidade de ‘relógios de forma’… mas as linhas retas foram suavizadas para se tornarem ergonómicas de modo a acompanhar suavemente o contorno do pulso.

O mostrador cremes depurado ganha vida com ponteiros em forma de espada de acabamentos azulados ou dourados que evocam duas maneiras distintas de utilizar a cor em acabamentos que evocam a tradição relojoeira. Os novos Hampton dispõem de um movimento de calibre automático que pode ser visível através do fundo transparente.

Claro que houve muitos mais modelos e linhas geométricas, a começar pelos Royal Oak da Audemars Piguet e a acabar nos Reverso da Jaeger-LeCoultre. Mas, e tendo em conta específica essas duas emblemáticas linhas, já se sabe que estarão sempre entre as novidades anuais apresentadas pelas respetivas marcas no SIHH  – daí termos escolhido as novidades e modelos especiais… à espera do que a feira de Basileia nos vai reservar no capítulo dos relógios de forma.

Miguel Seabra
Espiral do Tempo

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