Combustíveis papo seco*
Se um aspecto positivo surgiu com toda esta situação de obrigatoriedade de disponibilização de combustíveis simples nos postos ditos de marca foi a quantidade de informação divulgada nos meios de comunicação, muita dela por pessoas que percebem do assunto. E parece-me útil agora que passaram algumas semanas tentar fazer um resumo de como vejo esta situação. Primeiro algumas considerações:
- Existe em Portugal legislação (Decreto-Lei n.º 142/2010. D.R. n.º 253, Série I de 2010-12-31) que determina as propriedades físico-químicas que qualquer combustível tem de respeitar para poder ser comercializado.
- Nas tabelas constantes na legislação para cada propriedade não são definidos valores absolutos mas sempre valores máximos ou mínimos que têm de ser cumpridos.
- De certo modo podemos afirmar que todos os combustíveis começam por ser simples pois só cumprindo com a legislação podem sair da refinaria (a esmagadora maioria do combustível comercializado em Portugal provém das duas refinarias da Galp Energia, em Matosinhos e em Sines).
- Para que o combustível cumpra com a legislação têm de lhe ser adicionados um conjunto de aditivos. A gasolina e gasóleo são substâncias de composição variável obtidas a partir de outra substância (crude) cuja composição também é variável. Se para cumprir com as especificações forem necessários aditivos naturalmente que terão de ser adicionados, e devido à variabilidade da matéria-prima provavelmente nem sempre nas mesmas quantidades, ou seja, todos os combustíveis, simples incluído, são aditivados pelo menos com a quantidade de aditivos necessária para cumprir com a legislação em vigor.
- A partir deste ponto de partida cada marca vai adicionar os seus próprios aditivos para produzir um combustível em que vá de encontro às suas especificações próprias (naturalmente mais exigentes que as da legislação, já que esta define o mínimo absoluto) e estratégia comercial.
Afinal que combustíveis temos nós agora disponíveis e o que os distingue? Quer para o gasóleo que para a gasolina, há neste momento 3 tipos disponíveis:
- Gasóleo/gasolina simples: anteriormente vendidos tipicamente pelas grandes superfícies e que agora passaram a ser obrigatórios em todos os postos, que respeitam a legislação mencionada acima
- Gasóleo/gasolina de marca normal
- Gasóleo/gasolina de marca premium
Mais relevante do que começar a analisar as propriedades destes combustíveis é perceber que implicações vão ter para o utilizador, e aqui há que distinguir entre efeitos imediatos e efeitos a longo prazo.
No imediato durante a condução, a principal propriedade que altera o comportamento do motor é o índice de octano na gasolina e o índice de cetano no gasóleo.
Tanto a gasolina simples como a gasolina de marca normal são gasolinas de 95 octanas, enquanto as gasolinas premium são tipicamente de 98 octanas. Num artigo anterior já tive oportunidade de descrever qual o efeito do índice de octano e resumidamente há vantagens em usar combustível de 98 octanas em veículos com motores pequenos ou sobrealimentados que sejam usados predominantemente em condução urbana. Nas gasolinas de marca (95 ou 98) é ainda possível que sejam adicionados aditivos que vão facilitar a inflamação do combustível, mas com efeitos muito menos perceptíveis em motores modernos.
De igual modo os gasóleos premium têm tipicamente um índice de cetano mais elevado, e aqui as principais vantagens são menores vibrações e ruído de operação, especialmente quando o motor está frio.
Já quanto aos efeitos a longo prazo os combustíveis de marca podem ter adicionados aditivos que, por exemplo, melhoram a capacidade detergente (reduz a formação de depósitos no circuito de combustível) ou a resistência à oxidação (estabiliza o combustível limitando a formação de compostos indesejados). Os resultados destes aditivos só se fazem sentir no longo prazo (mais de 50 ou 100.000 km).
As vantagens de usar um ou outro combustível vão assim depender muito do tipo de utilização que é dado ao veículo. Por exemplo se passar muito tempo sem usar o automóvel é capaz de ser boa ideia usar um combustível com mais resistência à oxidação. Ou ainda se estiver a pensar ter um carro durante muitos anos um combustível com bom efeito detergente pode ser importante para manter a saúde do sistema de combustível.
Na prática toda esta discussão técnica é um bocado irrelevante, na minha opinião o verdadeiro problema que surge com esta legislação tem a ver com a interferência no mercado de venda a retalho de combustíveis.
Antes da entrada em vigor da legislação todos estes combustíveis já estavam disponíveis aos utilizadores. Quem quisesse abastecer combustíveis simples sabia onde se dirigir. É importante notar aqui que o preço final do combustível depende não só do produto vendido mas também do modelo de negócio. Os preços praticados pelas grandes superfícies são possíveis não só pelo facto dos combustíveis com menos aditivos serem logicamente mais baratos mas principalmente pelos baixos custos de operação e integração com outros serviços. Pode não ser óbvio mas as típicas longas filas de espera para abastecer nestes postos representam também um custo para o condutor. Não é coincidência que mesmo após a entrada em vigor da legislação as grandes superfícies continuem a praticar preços substancialmente mais baixos.
Outro aspecto que pode passar despercebido é a enorme variação de preços entre marcas (e mesmo entre postos da mesma marca). Para comprovar isto basta aceder a serviços que comparam os preços entre diferentes postos (um exemplo é o site maisgasolina, também disponível em app para smartphone, recomendo) e verificar que num raio de poucos km é possível ter variações de 10% ou mais num produto que acaba por ser quase indiferenciado.
Tudo isto para uma suposta poupança de 3 cêntimos por litro quando no princípio do ano uma medida promovida pela mesma entidade o tinha aumentado em 6 cêntimos… Mais valia estarem quietos.
Mas quanto a mim o mais grave de tudo isto é a obrigação de uma empresa ser obrigada a vender um produto que não está interessada em vender. E é aqui que entra o produto que deu origem ao título deste artigo, o papo seco. É um pão básico, não faz mal à saúde (muitos comi eu quando era mais novo) mas não passaria pela cabeça de ninguém obrigar a que fosse vendido em todas as padarias, cafés, supermercados e pastelarias. Ou melhor, espero que não passe…
* Que afinal não é a mesma coisa que carcaça…
Gonçalo Gonçalves
Coordenador do laboratório de veículos e propulsão do DEM-IST