O “caso VW” na perspectiva do investigador
Na sequência das recentes notícias vindas a público sobre a adulteração das emissões de poluentes por parte da VW, a primeira nota a salientar é que não surpreende que um automóvel, quando sujeito a uma utilização quotidiana, consuma e emita mais poluentes que os valores apresentados nos testes de certificação.
Partindo desta ressalva, procurar-se-á contextualizar as notícias que têm sido emitidas com a informação disponível e com a experiência que possuímos no IST para caracterizar consumos e emissões de veículos em estrada, em condições reais de operação.
O mercado de veículos vendidos nos EUA é largamente dominado pelos motores a gasolina, o que se reflecte nos limites de emissão, que são mais estreitos do que na Europa para alguns poluentes tipicamente associados aos motores a gasóleo. E é neste contexto que o grupo VW tem procurado introduzir o gasóleo nos EUA, embora este combustível ainda represente apenas 3% do total de vendas naquele país.
Ao contrário do que sucede na Europa, nos EUA os limites de emissão de poluentes regulados, no processo de certificação de veículos, não contemplam o combustível/motor colocado no veículo. Ou seja, o mesmo veículo com motor a gasolina ou gasóleo é sujeito aos mesmos procedimentos de teste e limites de emissão. Contudo, os motores a gasolina emitem primordialmente alguns tipos de poluentes, enquanto os motores a gasóleo emitem essencialmente outros.
Os óxidos de azoto (NOx) a par das partículas, são os principais poluentes dos motores a gasóleo. Sendo que, enquanto para as partículas existem filtros que promovem a sua eliminação, no caso do NOx a questão é mais complexa. Os motores a gasóleo são cada vez mais potentes, os veículos aceleram mais depressa, apesar de serem mais pesados e, em condução “normal”, tal resulta em temperaturas elevadas dentro do motor que promovem a formação de NOx. Este foi o poluente que alegadamente viu os seus valores adulterados.
Regressando à questão dos limites da emissão de poluentes, nos EUA a frota de um fabricante automóvel tem de cumprir 0,07 g/mi (aproximadamente 0,04 g/km) e os veículos podem ser certificados cumprindo um conjunto de limites, que podem ir, no caso do NOx, de 0,20 g/mi (0,12 g/km) até 0,07 g/mi. Na Europa, os limites de emissão são específicos consoante o motor seja a gasolina ou a gasóleo, como referido, sendo a norma EURO 5 (referente aos anos em causa) de 0,18 g/km de NOx para motores a gasóleo.
Desde os anos de 1990, quando começou a existir o controlo das emissões por parte de reguladores, os veículos passaram a integrar electrónica que veio ajudar os construtores a encontrar soluções para cumprir as normas e, ao mesmo tempo, oferecer um produto de fosse de encontro às necessidades dos condutores. No fundo, um automóvel que não consome nem emite, também não anda depressa, não sendo, por isso, apelativo para o mercado.
O alegado software que a VW integrou nalguns veículos tem, aparentemente, a capacidade de detectar quando um veículo entra num ciclo de certificação. O ciclo tem um perfil de velocidade ao longo do tempo perfeitamente definido e, embora se possam jogar com algumas tolerâncias na velocidade, não será difícil detectar que se está na presença de um ciclo de teste, em que ponto se está do ciclo e para onde se vai. Na Figura 1 é possível ver um ciclo de condução dos EUA (FTP 75) e Europeu (NEDC) e algumas características (Tabela 1).
Deste modo, sendo actualmente tudo gerido pela electrónica, é possível alterar parâmetros que têm como objectivo minimizar as emissões de poluentes (NOx no caso). Especulando um pouco, é possível alterar parâmetros como recirculação de gases de escape (EGR), injecção de combustível, gestão do motor através da caixa de velocidades (que em larga percentagem dos veículos é automática nos EUA), entre outros.
Na vida real, os ciclos de condução são totalmente diferentes dos ciclos de certificação. Obviamente não é expectável que conduzir de forma diferente origine consumos e emissões iguais. O grupo de investigação da West Virginia indica valores entre 10 a 40 vezes acima da certificação. Fica ainda por saber qual o contexto de condução e como foi feita a comparação.
Por exemplo, não é expectável que a subir Monsanto na A5 (8% de inclinação) a 120 km/h os consumos e emissões de NOx sejam semelhantes aos de certificação. As condições de funcionamento do motor ao nível das cargas, rotações, temperaturas, etc., estão completamente fora dos pontos de funcionamento que se encontram num ciclo de certificação, e é essencialmente nestas condições off-cycle que se verificam as maiores discrepâncias.
Estes testes foram, de acordo com as notícias, efectuados em estrada, com sistemas portáteis de medição de emissões (ou seja, com analisadores de gases colocados no escape do veículo), acesso a dados do motor, informação sobre velocidade, aceleração, etc. Após instalado todo este equipamento, o veículo vai circular na estrada e todos estes dados são recolhidos. Estas técnicas de medição também existem no IST e têm servido para desenvolver teses de mestrado e de doutoramento.
Apesar das dificuldades em fazer investigação em Portugal, também por cá, no âmbito de uma tese de doutoramento, já se tinha concluído que, numa amostra de 11 veículos a gasóleo (de várias marcas), com cilindradas entre 1120 cm3 e 1995 cm3, ao utilizar sistemas portáteis de medição de emissões e metodologias adequadas para replicar o ciclo de certificação europeu (NEDC) com dados recolhidos em estrada (para evitar os diferentes contextos de condução), a diferença média obtida foi de 275% (aproximadamente 4 vezes mais) ao utilizar dados de condução real no ciclo de certificação.
Assim, pode-se afirmar que os veículos se comportam de uma determinada forma nos ciclos de certificação porque são predefinidos, tipicamente fazem uso de uma faixa estreita de operação do motor (apesar de serem mais exigentes nos EUA do que na Europa), ao passo que em condução real as gamas de utilização são mais extremas, mais variáveis e é nos pontos de operação do motor extra-ciclo de certificação que as diferenças tendem a ser mais elevadas e a apresentar maiores discrepâncias.
Actualmente discute-se a entrada em vigor de um ciclo de certificação mundial, mais representativo, mais exigente, com procedimentos laboratoriais mais rígidos. No entanto, o consenso que existe sobre a baixa fiabilidade dos testes de certificação já levou a Comissão Europeia a ponderar estratégias alternativas para evitar a detecção de entrada num ciclo certificação e para utilizar uma gama alargada de operação do motor. Uma das estratégias passa por caracterizar consumos e emissões em estrada, tal como se faz aqui em Portugal, no IST, ou na West Virginia.
Espera-se que esta última hipótese contribua finalmente para clarificar as discrepâncias entre dados de certificação e condução “normal”, de forma a avaliar em que sentido o aumento de eficiência e redução de emissão de poluentes é real. Finalmente, puxando a brasa à nossa sardinha, seria importante que grupos de investigação como o do IST, o da West Virginia e outros (poucos) espalhados pela Europa e EUA possam contribuir para o desenvolvimento de novas soluções de certificação de veículos.
Gonçalo Duarte
Investigador no laboratório de veículos e sistemas de propulsão do DEM-IST, VP Lab