Visto de África e de fora do meio
A casa ao lado da minha ardeu, às 2:30h da madrugada !
O meu grande amigo e então único ocupante, ilustre académico e Homem (sim, com H) de cultura, já a gozar a década dos 60s, salvou-se de morrer intoxicado por ter de dormir com uma máscara de ar forçado para prevenir a apneia do sono.
Na minha casa, uns 3 metros ao lado, eu, a minha mulher e os três filhos dormiamos despreocupados e a sono solto.
Perguntar-se-á o leitor, apanhado desprevenido pela situação: “Mas o que tem isto a ver com motores ???”
Bom, antes do mais o incêndio teve início num aparelho com motor. Não num dos que nos permitem longas ou rápidas deslocações, mas num ar condicionado que nos traz conforto, atendendo ao clima destas latitudes e também à má qualidade da construção que tem sido apanágio destas últimas décadas de dificuldades e fraca fiscalização.
É relevante ainda o facto de a máscara de ar forçado ter continuado a trabalhar porque, cansado das falhas de energia, persistentes durante o período nocturno na época das chuvas, o meu vizinho me pediu emprestada uma UPS (unidade de estabilização e fornecimento de energia passível de aguentar o funcionamento de um computador ou outro aparelho similar durante o intervalo de tempo que medeia entre a falha de energia da rede e o arranque do gerador – ainda necessário em muitas zonas).
Sem a UPS o meu vizinho teria morrido intoxicado, pelo testemunho de cor negra deixado em todos os tectos e paredes da sua casa. Quando acordou com a luz das chamas, só teve tempo de correr para fora de casa e assistir impotente ao seu lavrar
Retomando a questão: o que tem isto a ver com motores – carros, motps, aviões e barcos?
O ar condicionado ardeu uma semana depois da data em que estava agendada a sua manutenção! Por falta de peritagem apropriada ficou no ar a suspeita de que, caso tivesse sido devidamente inspeccionado e mantido, talvez não tivesse ardido…
Para qualquer utilizador destas máquinas que nos são próximas é comum a noção de “manutenção”. No conceito preventivo, profilático do termo, e não numa perspectiva de “remediação”.
Ora, correndo o risco de causar alguma polémica entre os meus compatriotas e um pouco por todo o continente, vou ser pouco “politicamente correcto” e ousar afirmar que o conceito de “manutenção preventiva e periódica” não faz parte do nosso dia-a-dia.
Repare-se que utilizei propositadamente “nosso” pois também me incluo, em termos de auto-crítica.
– O estado geral do parque automóvel em Africa é, no mínimo, lastimoso;
– A Europa e Estados Unidos da América excluíram dos seus aeroportos a esmagadora maioria das companhias de aviação africanas – na maior parte dos casos chamando a atenção para questões associadas à manutenção das aeronaves
– Na grande maioria dos países africanos não existem inspecções periódicas de automóveis, muito menos aplicáveis a motociclos ou a embarcações – sejam estas de recreio ou profissionais.
Os voos atrasam horas e por vezes dias por se ter descoberto algo que não funcionava bem e ter de se esperar por peças ou por quem as saiba mudar. É comum vermos automóveis e camiões na estrada, encostados ou mesmo na via, com eixos partidos, rodas perdidas, motores avariados e com todo um leque de possíveis avarias. Vemos a circular, milagrosamente, “táxis”- gira-bairros, rabos-de-pato, bolinhas, kumpapatas, chapas e toda uma plêiade de veículos num estado deplorável e em condições de grande perigo – para si, passageiros e demais utilizadores da via pública
Por informação de um Director de uma conhecida empresa de transportes públicos, dos 4080 autocarros novos que chegaram a uma importante capital africana, há uns 3 ou 4 anos, poucos são os que ainda circulam, começando por se avariarem os ar condicionados (aparelho que me motivou para escrever esta crónica), depois as portas, a embraiagem, os travões…
Quando peço para um motorista ir fazer a revisão de uma viatura a resposta é sempre a mesma “Porquê chefe ? Está tudo OK…”
Quando começámos a andar em motos de alta cilindrada por África fora e quisemos começar a fazer as manutenções, percebemos que teríamos de ser nós mesmos a fazê-lo. Mais tarde, e já com mais de uma dezena de motos no grupo, acabámos por ter de chamar um namibiano nosso amigo e mecânico de motos que, numa semana e a trabalhar com afinco na oficina de um dos nossos, o fazia com uma eficácia, confiança e economia que contrastava com o nosso “desenrascanço”.
África está a investir muitos recursos em novos equipamentos, novas estradas, novas escolas, novos saberes e novas competências.
Se não mudarmos a nossa mentalidade e adoptarmos políticas e princípios de manutenção e gestão dos nossos novos equipamentos, estes envelhecem, desgastam-se e avariam em pouco tempo, tornando inútil ou mesmo perigoso todo o esforço realizado e passando uma imagem de desleixo e abandono que, não creio, tenha de ser a que melhor descreve este continente de gentes criativas, simpáticas e com vidas de grande sacrifício – apostando tudo num futuro melhor.
NOTA: já chamei uma empresa de manutenção para ver os aparelhos de ar condicionado de nossa casa… É que não me lembro quando tinham vindo a última vez !
Nuno Gomes
Pró-reitor da UnIA