Legislar por objectivos
Atendemos às seguintes peças de legislação:
- Decreto-Lei n.º 4/2018: define regras para incentivar os municípios a trocarem por veículos elétricos os veículos movidos a combustíveis fósseis.
- Resolução do Conselho de Ministros n.º 54/2015: Aprova o Programa de Mobilidade Sustentável para a Administração Pública 2015-2020 – ECO.mob
- Despacho n.º 1612-B/2017: Regulamento de atribuição do incentivo pela introdução
no consumo de veículos de baixas emissões
E às seguintes notícias:
- Cidades podem proibir circulação de carros a diesel
- Gasóleo com os dias contados: 11 capitais proíbem circulação de veículos a diesel
- Alemanha vai banir carros a gasolina e gasóleo
O que apresento é apenas uma minúscula amostra de uma tendência que cada vez mais se observa: com objectivos louváveis de melhoria da qualidade de vida das populações cria-se legislação que vai promover (ou proibir) tecnologias particulares. Este tipo de actuação não é novo, e demonstra uma abordagem à resolução de problemas reais por via legislativa cuja eficácia é, no mínimo, questionável.
Esta tentação de legislar tecnologia não é nova. Aqueles que têm acompanhado a evolução dos transportes e regulação nos últimos 20 anos já assistiram isto a acontecer com a promoção dos veículos a gasóleo em detrimento de gasolina para redução de CO2, a promoção de gás natural, hidrogénio, biocombustíveis, e agora é a vez dos veículos eléctricos. Nada de novo portanto.
Na minha opinião esta abordagem enferma de dois problemas fundamentais. Primeiro, ignora a sustentabilidade económica das medidas propostas. Segundo, vem amarrar os diversos agentes às soluções actualmente disponíveis (ou do conhecimento do legislador), ignorando a evolução tecnológica permanente que pode trazer solução eventualmente mais apelativas. Quem me diz que amanhã não vamos ter veículos a gasolina ou a gasóleo com emissões de poluentes nulas ou perto disso? Ou uma outra solução de que ninguém ainda se lembrou…
Posto isto, há outra maneira de abordar o problema? Sim, mas passa por primeiro definir qual é o problema, são as emissões de CO2? A qualidade do ar em meios urbanos? Em qualquer um destes casos uma legislação mais eficaz deveria limitar-se a definir objectivos a ser cumpridos em modos gerais (p.ex. limites de emissões), deixando aos diferentes agentes proporem soluções que se enquadrem nesses objectivos, sem nunca identificar ou favorecer tecnologias concretas. A(s) solução(ões) mais eficiente(s) para o problema naturalmente surgirão por um processo de evolução e selecção, em que a sustentabilidade económica terá um papel chave.
Para demonstrar que outros caminhos são possíveis gostaria de deixar um conjunto de propostas, actualmente sem enquadramento legislativo (no meu limitado conhecimento), cuja eficácia na redução de consumo de energia, emissão de CO2 e de poluentes poderia facilmente ser comparada com as actuais medidas em vigor.
- Aumento da taxa de ocupação de veículos em vias rápidas
O que emite mais CO2, um veículo eléctrico ou um veículo a gasolina? Os meus alunos já sabem que a única resposta a uma questão destas é: “Depende”. E neste caso particular depende também do número de ocupantes. Em ciclo de vida (a única métrica que interessa) um veículo a gasolina emite mais CO2 que um veículo eléctrico (pelo menos no caso português), mas se o veículo a gasolina levar 3 ou mais pessoas contra 1 no eléctrico o caso inverte-se. Porque não criar faixas de alta ocupação nas principais vias rápidas de acesso aos centros urbanos? Lá fora já se faz, cá parece que só fazem sentido se forem faixas BUS, mesmo que os autocarros sejam uma raridade naquela estrada…
- Portagens urbanas com base na emissão de CO2 (ou poluentes)
Pois, o papão das portagens urbanas… Mas há muitas maneiras de as criar. Sugestão de hipotético regulamento: eléctrico não paga; gasolina não paga se levar 2 ou mais pessoas e/ou tiver menos de x anos, diesel não paga se levar 3 ou mais pessoas e/ou tiver menos de y anos. Se for cheio até um fumarolas Diesel está isento. Com alguma imaginação quase todos os veículos podem ficar isentos. E o objectivo de reduzir as emissões por passageiro fica cumprido.
- Remoção do mercado de veículos mais antigos
A maior parte dos programas de abate de veículos que já estiveram em vigor inclui a obrigatoriedade de comprar um veículo novo (e eventualmente de tecnologia alternativa, leia-se eléctrico). É sabido que o aumento das emissões com a idade do veículo não é linear, e os veículos mais antigos apresentam emissões ordens de grandeza superiores aos mais recentes, o que levanta a questão, se o objectivo é reduzir a emissão de poluentes será mais eficaz substituir um veículo com, p.ex., 7 ou 8 anos por um eléctrico ou, com o mesmo orçamento, substituir 3 veículos com 20 anos por 3 veículos com 5 anos? Além de que me custa um bocadinho como contribuinte estar a subsidiar a compra de veículos que estão completamente fora do orçamento do condutor médio.
- Alteração da fiscalidade de combustíveis
Esta só se compreende atendendo à necessidade de receita fiscal em que vivemos, mas é absurdo que a gasolina tenha mais impostos que o gasóleo. Afinal não são os veículos a gasóleo mais poluentes? (pelo menos é esta a história que nos contam…). Será assim tão difícil estudar um novo modelo de taxação de combustíveis globalmente neutral?
- Melhorar comportamento de condução
Se é razoavelmente claro mesmo para um leigo que o consumo (e as emissões de CO2 associadas) está intimamente associado ao comportamento de condução, o que não será tão óbvio é que as emissões de poluentes (em particular o famigerado NOx) são ainda mais dependentes do comportamento de condução (as emissões de NOx tendem ter um crescimento quase exponencial com a aumento da agressividade da condução). Porque não criar um sistema voluntário em que os condutores podem usar tecnologias de registo de comportamento de condução (já disponíveis no mercado) para demonstrar que são condutores limpos e assim poder aceder a alguns dos benefícios acima descritos (por exemplo as portagens urbanas)?
É possível argumentar que a quantificação do efeito destas medidas não é trivial, mas garanto-vos (e aqui puxo a brasa à minha sardinha) que não falta em Portugal gente competente na academia capaz de ajudar as entidades reguladoras a aferir do real potencial destas medidas. E a ajudar o legislador a produzir leis que façam sentido.
Gonçalo Gonçalves
Professor no Departamento de Engenharia Mecânica do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa