Onde estava eu no 25 de Abril…
O António Pereira, o Tó, é um amigo de longa data. Lembro-me dos nossos encontros nas apresentações da AMG, e mesmo nas visitas que de vez em quando fazia à fabrica em Affalterbach. Portanto, mais do que natural aceder e aceitar a sua proposta de escrever mais ou menos regularmente para esta sua nova aposta. Faço-o também porque o António me disse que poderia escrever sobre o que achasse interessante, quer fosse do desporto motorizado ou não. Ok, então, vamos a isso.
Onde estava no 25 de Abril? Uma pergunta que tem levado a uma série de reportagens e que me levou também a recuar 40 anos e a pensar nesse dia. Curioso como a mente humana pode fazer um rewind e pôr em play um acontecimento tão lá atrás… Mas vamos lá ver.
Eram uma seis da manhã tocou o despertador, ou talvez uns minutos antes das seis. Estava em Pully, uma vila muito simpática mesmo ao lado de Lausanne, num apartamento para onde me tinha mudado nesse segundo ano de funções como manager do Emerson Fittipaldi. Era um ano muito importante, era a primeira época na McLaren, queríamos ganhar o mundial depois de, em 1973, o Emerson ter chegado ficado em segundo no campeonato, atrás de Jackie Stewart.
Era uma época importante também porque a Marlboro e a Texaco tinham apostado muito nesta equipa de Woking. Teddy Meier era o chefe, e para mim era super importante, pois pela primeira vez tinha negociado o contrato do Emerson com o John Hogan e com o JJ Goossens. Ainda por cima, a Philip Morris acabara de inaugurar o seu novo edifício na Rue du Tivoli e tinha-nos cedido um gabinete com secretária e tudo, aquilo cheio de pompa e circunstâncias, mesmo ao lado do chefão, o Aldo Buzzi – um grande senhor, que foi também o grande responsável pelo envolvimento da Marlboro no desporto motorizado, algo que se mantém até hoje, mais ou menos camuflado, devido às restrições de publicidade ao tabaco.
Bom, mas dizia eu, tocou o despertador, levantei-me e fui para a casa de banho ligando o rádio para ouvir as notícias. De repente, no noticiário das seis, ouço o locutor, meio excitado, quase gritando, anunciar “coup d’Etat au Portugal”, mais isto e mais aquilo – e eu ali meio aparvalhado, sem saber o que fazer, sem reacção. Golpe de Estado em Portugal – os suíços passaram-se. Começo a pensar no que fazer, se é que às seis e poucos minutos da manhã, daquela quinta-feira, ou de qualquer outra quinta-feira, se consegue pensar.
Vou ligar para a minha mãe, deve estar em Lisboa e o melhor é ir para S. João do Estoril, para a casa de férias, penso. Ligo para a velha, acordei-a, naturalmente, e não sabia de nada. Digo para ir já para S. João, era mais seguro, com certeza.
OK, então este problema já está solucionado. Mas, entretanto, penso que tenho de ligar para o Emerson, para o acordar pois eu passaria por Lonay no caminho para o aeroporto de Genebra, como sempre, para seguirmos para Madrid no avião das oito e meia. Ora, apanhar um avião com o Emerson, já naquela época, era um filme. Ele tentava sempre ver se batia o recorde em chegar o mais tarde possível e devo dizer que o pessoal da Swissport e da Swissair tinham uma paciência de santo para nos aturar.
Ligo então para o Majo e informo do que se passa em Portugal. Pôrra, Português, está louco? Português não faz revolução não, cacete, só faz pão e é açougueiro… Eu penso: isto hoje vai ser dose de cavalo! E… De repente lembro-me que na casa ao lado da nossa, em São Joã,o vivia o Silva Pais com a família!!! Pego no telefone e ligo para a velha, que entretanto já não estava em Lisboa, mas sim a caminho do Estoril.
Não havia telemóveis, portanto, era esperar que chegasse à outra casa e eu ligasse para ela – no fixo, naturalmente. O tempo começa a escassear, eu a ver a minha vida a andar para trás, não podia chegar tarde a Lonay, o avião não ia esperar e o Teddy Meier, apesar de tudo, não ia entender se não estivéssemos em Jarama a horas. Começo a vestir-me e antes de sair ligo para a velha, para São João. Olha, volta para Lisboa que aí pelas razões óbvias pode ser muito perigoso, OK?
A minha mãe, já chateada de estar a ser telecomandada, diz para eu tratar da minha vida que ela era maiorzinha e sabia o que fazer. Eu que ligasse mais tarde de Espanha. OK… Saio de casa a correr, entro no Iso Rivolta, o meu “carro de serviço” (não sei por que razão o Emerson me tinha dado esse carro para usar, uma besta cheia de cavalos e com uma sêde desgraçada), e voo baixinho para Lonay. “Pô, Domingos, estamos atrasados, cacique…”. Eu atrasado e a ouvir que estava mesmo atrasado de um cara que se levantava quase sempre com meia hora de atraso e no final do dia somava para aí umas duas horas de falta de pontualidade…
Volto para baixo, entro de novo na auto estrada e pé em baixo até Cointrin. Chegamos ao estacionamento faltando 17 minutos para a descolagem. O Emerson estava lívido, eu tinha batido o recorde dele em chegar atrasado ao aeroporto e ainda queria ligar para Lisboa da cabine da Swissair, só para saber se estava tudo OK. “Você tá louco, Português, vocês estão todos loucos na Terrinha, fazer revolução em fim de semana de corrida é sacrilégio! Não podia fazer noutro dia?” Não, não podíamos.
Enfim entrámos no avião, fomos para Barajas, alugámos o carro e ala que se faz tarde para Jarama. Lá chegados, encontramos alguns dos portugueses, jornalistas e fãs da F1, que também não sabiam muito pois tinham viajado de noite para Madrid. Bem, lá nos informámos do que se passara, o Emerson foi para as reuniões com os técnicos e depois, ao almoço, na motorhome, perguntou-me como estavam as coisas em Portugal. Ficou incrédulo, o Portugal que ele conhecia de nos ter visitados várias vezes tinha feito uma revolução, tinha derrubado a ditadura, era a partir de agora um país democrático.
Foi um fim de semana dramático, uma prova importante, pois era a primeira na Europa depois das três primeiras (na Argentina, em Interlagos e na África do Sul), em que o Emerson só tinha ganho no Brasil, era o início de um ano histórico para todos nós, para todos os portugueses, e também histórico para o Brasil, que iria ter um campeão mundial, um bi-campeão de F1, e eu fazia parte da equipa do Emerson… Foi tudo muito marcante – segui de Jarama para Lisboa para ver a minha mãe, deu um cu de boi no aeroporto, eu cheguei à Portela com o meu passaporte alemão, aquilo era muita democracia de uma só vez. Sim, eu alto, loiro de olhos azuis e com o meu nome germânico, tinha um passaporte alemão, daqueles verdes, e não podia ser. Não foi fácil entrar, mas, três dias depois, no dia 2 de Maio, foi uma verdadeira tourada para sair. Mas, isso não é para qui chamado hoje. Fica para outra ocasião.
Como bom homem dos automóveis, o meu 25 de Abril tinha de estar ligado às corridas… E esteve mesmo, como depois veio a estar o 11 de Março de 1975. Fica então para uma próxima história.
Domingos Piedade