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Filhote,
Por mais ridículo que te possa parecer, ao iniciar a escrita desta minha pequena nota sobre a utilidade ou futilidade da forma como distribuímos a energia e o tempo nos pratos de uma balança das nossas várias vidas, a verdade é que foram tantos os inícios quantas as folhas amarrotadas no meu caixote do lixo.
Espero que te encontres bem de saúde, de disposição e com “superavit” de estado de espírito para, de cabeça erguida, enfrentares mais uma fase final de exames na Faculdade. Já estás quase a terminar o teu curso universitário!
Passou tão rápido…… desde aquele telefonema. O mais encantador e silencioso telefonema da minha vida. Corri logo para lá. Cheguei mesmo a horas. No corredor passaste por mim em ritmo acelerado, determinado – como ainda hoje fazes – e sem parares. Talvez por isso não te lembrarás ou até não tenhas reparado, na expressão facial que imagino ter feito, num misto de grande emoção e surpresa. Surpresa porque estavas um pouco “esverdeado”, pelo menos para um benfiquista ainda que não praticante; tinhas olhos e pestanas sobressalientes e os teus braços fortes que terminavam numas enormes mãos – parecidas com as do teu avô materno – estavam bem levantados, provavelmente a pedires-me que te desse o primeiro abraço. Não te percebi e ambos perdemos esse momento…. E já tinha tanto para te dizer. Tanto para te contar. Tanto para te ensinar.
Mal entraste, encheste a casa. Mal entraste e ela passou a ser fresca quando fazia calor e temperava quando fazia frio. Transformaste os dias em noites e as noites em dias. Tenho de confessar-te que desde jovem nunca havia gostado do meu queixo. Passei a gostar dele contigo: levaste-me a descobrir que ele era um fantástico instrumento de afago ao teu, numa brincadeira de mimos que nos causava gargalhadas a ambos. Esses momentos ganhámos.
Como sabes os meus desafios profissionais foram sendo sucessivamente mais exigentes e esses momentos diminuíram de frequência. Na maior empresa do mundo, discutia-se a importância do equilíbrio entre o «profissional» e os nossos (meu e teu) afetos, como condição base do nosso sucesso como executivo.
Não sabes, mas a essa discussão sobrepunha-se a pressão do “Bottom Line”. Sobrepunha-se a oportunidade de não falhar. E sabes como detesto falhar. Daquela mesma forma que tu, muito catraio ainda, detestavas perder no ténis ou no golfe. Tu lembras-te…
Sem me dar conta, aqueles momentos de gargalhadas terminaram. Sem me dar conta, o meu queixo deixou de ter importância, uso e, ainda menos, graça. E aqui falhei, pois no teu já tens barba.
E tenho tanto para te contar. Tanta gargalhada para provocar. E tanto abraço em falta para nos oferecer.
Algumas vezes, poucas, te disse que eras diferente. Diferente pela positiva. O meu orgulho em ti, nunca foi efetivamente expresso em suficientes abraços, em suficientes brincadeiras, em suficientes palavras e conversas. Agora que começo a fazer balanços, nesta vida de dois dias em que uma noite já passou, sinto que o impercetível processo de afastamento e opacidade, insensível ao magnetismo cativante e cúmplice daquele primeiro abraço que me pediste, foi finalmente percebido. Sinto que a real profundidade da nossa relação nunca foi alcançada. Aquela profundidade oceânica onde nos vemos mesmo sem a luz do sol, onde nos entendemos mesmo sem falarmos, onde ganhamos o esquecido e onde esquecemos o perdido.
Talvez ainda haja…… Tempo para nos refrescarmos, nestes dias quentes. Tempo para voltarmos a tornar as noites em dias. Talvez ainda mereçamos e queiramos essa oportunidade. Oportunidade que não seja mais uma ilusão de equilíbrio entre as vidas profissional e privada, que ao longo da vida fui, erradamente, construindo.
Empiricamente a minha realidade faz-me concluir que o sucesso exige Tudo de nós. Que só é possível tê-lo, num dos pratos. O tal equilíbrio é apenas uma ilusão. Nesse caso, então agora é a vez do nosso prato!
Temos tanto para conversar! Tanto para brincar!
E é com muito carinho e saudades que me despeço, fazendo votos para que os teus exames terminem em bem rapidamente e que na volta do correio me possas responder.
Beijo do,
Pai.
PS: texto dedicado a todos os que perderam sequer uma só festa na escola dos “putos”, por razões profissionais. Porque o tempo dedicado aos afetos com os “nossos” é o único, no final do dia.
Mário Lopes