Questão de coerência
Aspiração antiga do sector, o regresso do programa de abate aos veículos em fim de vida foi recentemente discutido em plenário na Assembleia da República, após iniciativa da ACAP nesse sentido. Sobre as virtudes de tal programa, no que poderia ajudar a revitalizar um sector que tem sofrido como poucos uma enorme erosão desde o início da crise, mas que ainda vai empregando alguns milhares de pessoas, outros estarão em melhores condições do que eu para o fazer. Assim como sobre os seus benefícios em termos de protecção ambiental ou segurança, pelo que ajudaria a renovar um parque automóvel cuja idade média caminha já para a dúzia de anos – tanto mais que a proposta apresentada tinha como pressuposto não acarretar prejuízos fiscais para o erário público, antes pelo contrário…
Não posso, todavia, deixar de reter a postura do actual executivo perante o sector automóvel e tudo o que se lhe relaciona. Se os que o precederam tenderam sempre a considerá-lo como uma espécie de “galinha dos ovos de ouro”, em que por muito que se aumentasse a fiscalidade sobre o mesmo incidente proporcionava sempre maior receita fiscal (isto até ao ponto de praticamente o terem aniquilado), o Governo em funções tem demonstrado uma enorme insensibilidade perante o mesmo, recusando toda e qualquer medida que ajuda à sua recuperação, quase que dele fazendo uma espécie de coisa malquista aos olhos dos menos informados.
Desconheço se o objectivo é que, em Portugal, o automóvel venha a ser objecto proibido. Também já conheço de cor e salteado a justificação de que o fito é reduzir ao máximo as importações para reequilibrar a balança comercial – aos que acreditam nessa tese, recomendo a leitura atenta de vários estudos já publicados sobre o tema, e em que se prova à saciedade a falência do argumento.
O que não posso deixar de notar é a atitude dos mesmos responsáveis governativos, face ao mesmo fenómeno, quando se trata de decidir em causa própria. Por exemplo, na aquisição de automóveis para serviço do Estado, nomeadamente dos seus mais ilustres representantes. Não, não pretendo que, por cá, tão doutas figuras se desloquem de bicicleta como o fazem alguns desses loucos vikings dos países nórdicos. Mas que não ficaria mal mais algum decoro nas suas escolhas, isso não ficaria… E o argumento da gota de água no oceano é tão válido para qualquer servidor do Estado como para qualquer um de nós!
Mas o mais notável terá sido mesmo a fórmula encontrada para estimular o cidadão comum a exigir a emissão de facturas, assim se substituindo aqueles a quem paga com os seus impostos na tarefa de controlar quem declara o quê. Decerto haveria mil e uma outras formas de o conseguir, mas o que foi o Governo eleger como prémio de bom comportamento a sortear entre os que adiram à medida? Pois claro: automóveis! Pelo que, para este efeito, esses macabros engenhos de quatro rodas com motor já servem perfeitamente um propósito, no mínimo, duvidoso.
Claro que, também aqui, os números falam por si. As centenas de milhões de entradas para o primeiro desses sorteios decerto permitirão a muitos concluir pelo acerto da iniciativa governativa. Pela minha parte, dispenso análises mais perversas, e quero crer que a grande justificação para isso reside na enorme paixão que os portugueses continuam a nutrir por um dos maiores garantes da liberdade individual do mundo moderno, a mesma que tem permitido – apesar de tudo – manter vivo entre nós um fenómeno quando quase todos os outros, em idênticas circunstâncias, porventura há muito teria já perecido.
António de Sousa Pereira
Director da Absolute Motors
apereira@absolute-motors.com